quarta-feira, 21 de abril de 2010

Conto sobre um velho.

No mais pequeno canto da sala, um velho arrastava o seu passado de um lado para o outro, auxiliado por uma não menos velha bengala de madeira com a letra "R" gravada no punho gasto. As suas mãos calejadas pela sua companheira de sempre, traduziam facilmente a sua vida. Parou, poisou a bengala no soalho poeirento e puxou para si uma cadeira de baloiço. Sentou-se, descalçou os sapatos e deixou respirar os pés.
Estava sozinho, e por aqueles dias a única coisa capaz de o fazer sorrir eram aquelas duas crianças que lhe chamavam avô e que o apertavam intensamente cada vez que entravam numa correria harmoniosa, pela porta da casa. O copo, sempre cheio de uma bebida que depois de tantas vezes lhe escorrer pela garganta, ele não conseguia descrever, caiu da pequena mesa á sua esquerda. Sem vontade de se debruçar para o apanhar, ignorou-o. Por segundos, a mão direita abandonou a sua companheira e retirou da algibeira uma fotografia antiga. Era impossível contar o número de dedadas que ocupavam aquela desgastada recordação. Fitou a fotografia como todos os dias fitava e os olhos depressa lacrimejaram. Tirada há mais de sessenta anos, aquela era para ele uma relíquia. Tantos e bons amigos ali estavam, porém um destacava-se por ter tido um dia, a capacidade de ler o seu pensamento e amparar o sofrimento que o corrompia.
Ali, amava-o tanto ou mais como no segundo em que a objectiva roubou a alma áqueles pequenos corpos jovens. Todos tinham um risco de esferográfica sob os olhos, esta foi a forma que o velho encontrou para eliminar todos aqueles que tinham já sucumbido. Desses, apenas dois eram detentores de um olhar "limpo" que espelhava o que sentiam. Um, pequeno e gordo, outro, de cabelos loiros e sedosos, com um sorriso rasgado pela alegria da sua infância. Esse, o António, era o único que ainda não o tinha abandonado naquela viagem.
Guardou-os no bolso, e todos ficaram presos na profundidade dele...Só um continuou sentado á sua frente com o mesmo sorriso de miúdo. Nada disseram, encheram os copos de um bom abafado, levantaram vagarosamente o corpo pesado e olharam-se nos olhos. Um abraço terno quebrou a barreira já por si frágil que os separava. Após tantos e tantos anos, continuavam a ser a metade de um, e a metade do outro.




Ao António.

3 comentários:

  1. um dia vou querer ser assim como o velho da bengala... eternizar as amizades e guardar cada pessoa, não na algibeira, mas num cantinho do coração =)

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  2. Demorei a vir ler mas vim! Está perfeito, bem que a Regina me tinha avisado que este acabava bem... Mas há coisas em que me custa pensar e não sei se para mim este é um final feliz, pensar na velhice e lidar com a perda dos que tanto gostamos ! :(

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  3. selo - http://biskilima.blogspot.com/2010/06/selo-d.html

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