terça-feira, 30 de agosto de 2011

A Graça da Lua.

É incrível o que nos passa pela mente enquanto um cigarro arde. Todas as inconstâncias da vida, as experiências que dizemos fulcrais, o que quase fazemos e o que quase deixámos por fazer. Utilizamos um vocabulário engomado para que nos levem a sério, quando precisamos gritar bem alto: “MERDA”!

Não posso perdê-la, não agora, deixem-me crescer e escolher os meus próprios caminhos, não mos apontem. Deixem-me cair, reerguer-me, correr, viver, sentir, provar…É forte demais esta pressão limitada, este pesar que é leve, este toque que nem sequer sinto. Talvez adore a monotonia, a rotina, o pouco que sabe tão bem. Talvez odeie a diferença, os tiros nos pés que me parecem coroas douradas sob uma cabeça demasiado pequena para a ostentar. No fundo, aliás, nem precisamos ir muito fundo para perceber a insignificância que respiramos. Não há pessoas especiais, há sim, pessoas que amamos e pessoas que não amamos. Não são necessariamente especiais por isso. Pintamos as coisas dessa forma porque é uma necessidade biológica que afecta o ego, não porque seja real e transparente.

Subitamente, a última réstia de tabaco. Deixamos os degraus de pedra que a brisa da noite gelou e seguimos caminho, sim aquele tal caminho. E tudo isto se desvanece. Continuo a sentir prazer em amar, neste caso, em amá-la. Continuo a sentir prazer em ser amado, em passar-lhe a mão pelo cabelo enquanto suspiro, em provar os lábios que sorriem quando a abraço. É isto o amor, não estou certo que exista, porém, precisamos de acreditar que sim. E confesso que, e faço questão de frisar, com ela o amor existe mesmo. Houve dúvidas outrora, mas agora voaram, aceitaram a boleia de uma nuvem escura que se sentiu a mais e permitiu que o sol brilhasse. Com ela e só com ela, o sol brilha todos os dias, dá até impressão que o seu brilho cresce a cada dia que passa, a cada Lua que vai, enquanto alguns admiram a sua Graça.

A ti. Porque te amo e porque sei que existes.

domingo, 7 de agosto de 2011

Irrealidade.

Mais um dia, mais que um. Não havia margem de manobra e tal não o incomodava. Fugiu-lhe o sorriso e o riso, o pouco tudo e o tanto de assim assim. Confusamente elucidado acerca dos meandros tropicais de um corpo nu, destruindo muralhas e alvejando portas de pedra escura.
Já não havia sol, o seu brilho desaparecera há muito. Porque razão exigimos tanto de nós próprios? Porque razão queremos atingir cumes que não conseguimos escalar? Devia ser proibido sonhar. Sonhar em prol de quê? Sonho é provavelmente o melhor e mais adequado antónimo de realidade e por isso torna-se impossível associar duas coisas antagónicas.
“O sonho comanda a vida”, mas que grande treta! A vida comanda a vida a vida e nós vivemo-la, ou pelo menos devíamos vivê-la sem utopias ridículas que nos levam a nenhures. Já para não referir o trabalho que dá sonhar. Não há melhor que ter os pés bem assentes na terra, ter consciência do que somos e até onde podemos ir. Basta de planos afetivos e projeções idealizadas sem qualquer tipo de contratempo real. Vivamos o que há para viver, desfrutemos aquilo que aos poucos conquistamos.
É tão fácil que sejamos enganados pelos outros, é tão fácil deixar-mo-nos levar ao sabor da maré, caminhando a passos largos do abismo colossal que existe entre o REAL e o sonho.

Ciudad.

Visto de cima é uma cidade igual a tantas outras, com milhões de luzes amarelas que formam uma espécie de constelação. Numa das ruas, a um canto estranhamente confortável está sentado um sujeito negro, de cabelo curto, com as roupas rasgadas e sujas. Uma cama de cartão traz-lhe à memória as tardes passadas no alpendre fresco da avó, onde sentia o cheiro das orquídeas a florir e ouvia os pardais namorar no ninho construído num dos ramos da cerejeira.
Toda aquela cena morrera ali. Já não havia avó, pardais ou orquídeas. Restavam-lhe dois metros quadrados de cimento gelado e o que ouvia era a chuva a escorregar pelos caleiros e a mergulhar diretamente por cima do seu cobertor ensopado. 

A noite passara. Sentia os ossos reclamarem a humidade, mas ignorou-os. Rasgou os cartões e deitou-os no lixo. Caminhou até uma cafetaria e entrou. A empregada esfregava o chão. Pediu desculpa, contornou o piso molhado e foi até ao balcão. Dos bolsos tirou a última moeda e entregou-a ao dono do estabelecimento, individuo baixo, de bigode, que em troca lhe trouxe uma carcaça com uma fatia de fiambre tão fina que, se não a visse, pensaria estar a comer apenas pão. Devorou o seu pequeno-almoço que era também o almoço e o jantar. Limpou os beiços com um guardanapo e saiu.
Encontrava-se agora na rua mais movimentada da cidade, repleta de turistas que não se apercebiam da sua presença. Da mala tirou um saxofone dourado, das poucas coisas que guardara da infância. Limpou-o carinhosamente e levou-o aos lábios. A melodia que dele saía roçava a perfeição. Apenas uma jovem loira de olhos claros parou para o ouvir durante talvez cinco minutos. 

Então, aproximou-se dela e tocou olhos nos olhos. Agradeceu-lhe sem proferir uma única sílaba e ela retribuiu.
Perdeu o fôlego que outrora durava horas e sorriu para ela. Viu-a ir embora e só desviou a atenção após perder de vista a sua silhueta.
Arrumou tudo na mochila e foi. Estava feliz por ter conseguido voltar a tocar olhos nos olhos de alguém, tantos anos depois.
Alguns metros à sua direita, uma placa: “Bienvenidos a Cuba” .