Visto de cima é uma cidade igual a tantas outras, com milhões de luzes amarelas que formam uma espécie de constelação. Numa das ruas, a um canto estranhamente confortável está sentado um sujeito negro, de cabelo curto, com as roupas rasgadas e sujas. Uma cama de cartão traz-lhe à memória as tardes passadas no alpendre fresco da avó, onde sentia o cheiro das orquídeas a florir e ouvia os pardais namorar no ninho construído num dos ramos da cerejeira.
Toda aquela cena morrera ali. Já não havia avó, pardais ou orquídeas. Restavam-lhe dois metros quadrados de cimento gelado e o que ouvia era a chuva a escorregar pelos caleiros e a mergulhar diretamente por cima do seu cobertor ensopado.
A noite passara. Sentia os ossos reclamarem a humidade, mas ignorou-os. Rasgou os cartões e deitou-os no lixo. Caminhou até uma cafetaria e entrou. A empregada esfregava o chão. Pediu desculpa, contornou o piso molhado e foi até ao balcão. Dos bolsos tirou a última moeda e entregou-a ao dono do estabelecimento, individuo baixo, de bigode, que em troca lhe trouxe uma carcaça com uma fatia de fiambre tão fina que, se não a visse, pensaria estar a comer apenas pão. Devorou o seu pequeno-almoço que era também o almoço e o jantar. Limpou os beiços com um guardanapo e saiu.
Encontrava-se agora na rua mais movimentada da cidade, repleta de turistas que não se apercebiam da sua presença. Da mala tirou um saxofone dourado, das poucas coisas que guardara da infância. Limpou-o carinhosamente e levou-o aos lábios. A melodia que dele saía roçava a perfeição. Apenas uma jovem loira de olhos claros parou para o ouvir durante talvez cinco minutos.
Então, aproximou-se dela e tocou olhos nos olhos. Agradeceu-lhe sem proferir uma única sílaba e ela retribuiu.
Perdeu o fôlego que outrora durava horas e sorriu para ela. Viu-a ir embora e só desviou a atenção após perder de vista a sua silhueta.
Arrumou tudo na mochila e foi. Estava feliz por ter conseguido voltar a tocar olhos nos olhos de alguém, tantos anos depois.
Alguns metros à sua direita, uma placa: “Bienvenidos a Cuba” .
Sem comentários:
Enviar um comentário