terça-feira, 21 de abril de 2015

Cheiro

Devemos nós ser livres se não quisermos a liberdade? Devemos nós ser felizes se não achamos ter tudo aquilo que nos serviria para ter o sorriso eterno?
É uma questão que me intriga profundamente desde tenra idade. Os meus irmãos sempre adoraram jogar futebol e ficar horas debaixo da ponte centenária a dois minutos da casa da avó, à espera que as raparigas mais velhas que já namoravam e andavam sempre de mini saia por lá passassem. Essas miúdas eram tão boas, dizia o Carlos. E eram mesmo. Tinham a pela queimada pelo sol quente de Verão e o cheiro de papoilas nos cabelos. O meu irmão mais velho já havia namorado duas ou três, deliciava-se a contar os detalhes mais íntimos de relações infinitas de três semanas. Mas ai se ele as sabia aproveitar. Na primeira semana seduzia-as com falinhas mansas e o olhar latino fulminante. No inicio da segunda semana já as tinha desflorado umas quantas vezes. Até ao dia em que já só se aborrecia com os dramas e os lamentos das queridas.
Depos do jantar, os mais novos ajudavam a arrumar a cozinha, sacudir a toalha, lavar e secar a loiça com um pano bordado pela vizinha do fundo da rua, esfregona no balde, escorrer a água e num movimento conseguido pela observação terminavam o que era para todos um sacrilégio, até mesmo para a mãe que não era a típica mulher e mãe, dona e cuidadora da casa. Na verdade a mãe era tudo menos isso. Péssima cozinheira, detestava a maneira como o pai (não) se cuidava e irritava-se cada vez que tínhamos discussões de irmãos. Mas posto tudo isso era a nossa heroína como qualquer mãe o é para um filho.
Não me esqueço da pele macia das mãos quando tinha febre e passava horas sentada num banco baixo de madeira que lhe fazia sentir as costas estalar a cada minuto, a agarrar os meus dedos pequenos e frágeis e a voz dela…bem a voz dela era angelical de uma afinação invejada por muitas cantoras da cidade que atuavam no teatro municipal a cada quinzena do mês acompanhadas por uma orquestra medíocre composta por velhos gordos e que o destino quis que ali fossem parar, sem família, sem vida nem vontade de viver.
Era tão tarde. Os olhos pesavam como dois calhaus em cima de uma formiga. O Carlos saiu para levar um bolo de laranja à D. Teresa, a médica da cidade que fazia cinquenta anos, uma data a festejar. O pai deu o último gole na cerveja e preparava-se para vestir o casaco quando bateram à porta. Era ele, de cabelo ruivo e rosto em tudo semelhante ao da mãe. Tinha um sorriso enorme e os dentes alegremente perfilados. Eram os dentes mais brancos que já havia visto.
Porque é q demoraste tanto tempo? A D. Teresa convidou-me a entrar e cheirava tão bem que não resisti. Estava lá um quarto da cidade. Aristocratas e camponeses, mulheres feias, bonitas, gordas, magras, sujas, com bom aspeto.
À data o Carlos tinha já dezasseis primaveras e nunca tinha namorado. Entrou sem hesitar e dirigiu-se para um canto da sala onde ouviu umas conversas sobre política, daquelas que só gente letrada entende. No fundo, nem eles entendem, pensava. Usam palavras engomadas e acenam com a cabeça na esperança que alguém os salve com um copo de vinho caro e um charuto cubano.
Comeu cabrito, porco, coelho e uns pastéis esquisitos com um recheio amarelo cheio de açucar. A D. Teresa perguntou pela família, sentou-se num divã ao lado e chamou alguém que lhe queria apresentar. Uma mulher uns dez anos mais nova, amiga de infância que estava na cidade pela primeira vez. Enviuvou uns meses antes e precisava de mudar de ares. Respondeu afirmativamente quando lhe perguntou se gostaria de passar umas semanas lá em casa, longe da capital e perto da calma. Cumprimentou-o com dois beijos e sorriu. Que mulher pensou. Um corpo torneado e uns cabelos escuros que lhe caiam sobre o quadril em madeixas perfeitas. Tinha um nariz delicado e uns lábios carnudos. Depressa a despiu com os olhos e não foi fácil manter uma conversa de circunstancia que estava longe de o ser.
A casa estava vazia. Os resistentes da noite estavam religiosamente na mesma posição há horas e numa mesa de vidro com pernas de aço Valeriano de valor incalculável as garrafas do vinho caro contorciam-se umas al lado das outras. Teresa estava a cair de bêbeda e foi deitar-se
Carlos, é esse o teu nome não é? Sim. Fui casada tantos anos desde tão nova que não pude desfrutar de todos os prazeres da vida. E agora aqui estou contigo, um jovem atraente, bem feito, bonito…Aproximou-se e beijaram-se. Carlos não querida mostrar fraqueza, dar a entender que era a primeira vez que beijava alguém, pelo menos gostava de pensar que a colega de escola que beijou aos cinco anos não contava. Hm, estás tímido? Não te preocupes, eu ajudo. Passou a mão no corpo dele e continuou a beijá-lo. Levantou-se, abriu o fecho lateral do vestido azul mar , quando o rapaz pôde admirar aquele corpo experiente mas conservado, com uns seios não muito grandes, um rabo arrebitado, bem melhor que aqueles que via debaixo da ponte. Ajoelhou-se, desabotoou-lhe as calças de fazenda que haviam sido do pai e ficou surpresa pelo facto de o Carlinhos estar já ereto.
Foi rápido. Mais rápido do que o contexto pedia. Ela tinha a coisa tao quente pensou. E as mamas? Bem, as mamas eram tao bonitas. E mais ainda…nunca pensei que ela…sabes…aquilo que o Rafael diz que só as mulheres da vida fazem….oh, tu sabes…ela usou a língua….nem imaginas o quão bom é!!!
‘Tá bem Carlos, achas mesmo que vou acreditar que comeste a amiga da D Teresa? Aquela boazona não é para o teu bico pá. Já viste a quantidade de homens da cidade que andam atrás dela? E olha que alguns têm papel…Se ela não se deita com eles, contigo é que era impossível isso acontecer. Vai sonhando, vai..


A mãe abriu a porta preocupada. Então Carlos, tanto tempo para entregar um bolo? Vai lavar a cara e já para a cama. Amanha é dia de escola.

Laura

Véspera de segunda, aquele dia que depois das seis da tarde se torna fatídico, demasiado melancólico. É estranho como dois pequenos dias de fim de semana sabem a tanto, sim pequenos dias, julgo ser impossível que tenham as mesmas vinte e quatro horas dos restantes.
Depois do calor da lareira, é hora de seguir para a cozinha, retirar uma carcaça fresca e barrá-la com doce de cereja, receita da bisavó, oriunda de terras beirãs, onde o frio queima e o vento corta.
A última casa da esquerda com um pequeno quintal mal cuidado e um portão enferrujado e perro, outrora de cor prateada e puxador negro, uma pequena esfera bem oleada que a Laura, única neta, não tinha qualquer dificuldade em fazer rodar.
Cheirava a queijo de ovelha e chá de cidreira. A avó da Laura tinha preparado o lanche para as duas. Pousou a mala da escola ao canto da pequena cozinha com pouco mais de um metro quadrado. De um lado, o fogão a lenha e o lava- louças, de granito. Do outro, uma pequena bancada que terminava com o frigorifico. Laura achava estranha uma pequena caixa de madeira que a avó guardava religiosamente, não entendia porquê. A cozinha por si só era demasiado pequena para reunir três pessoas.
 Beijou o rosto do pai onde a barba causava impressão nos lábios da pequena, e o envelhecia uns dez anos. Trabalhava como operário numa pequena fábrica de lã, a cinco quilómetros de casa, que ele percorria diariamente a pé. O ar gélido da manhã e de fim de dia semeava rugas a cada golfada. Homem alto de cabelo dourado e olhos verdes, triste por natureza, reservado por consequência lógica. Havia-se divorciado da mãe de Laura fazia na semana seguinte oito anos. Era professora primária na única escola das redondezas. Cansada da monotonia do lugar, decidiu ir embora para a capital com uma amiga de infância. Deixou para trás tudo, sem pestanejar. Seria digno salientar que não foi uma decisão fácil, que no dia que antecedeu a partida mal pregou olho e que ainda hoje chora pela filha. Nada disso aconteceu, era o expectável, não aos olhos da ética ancestral da mulher.
A verdade é que ambos se habituaram à ausência consentida da mãe, e se no principio esquecer tudo era tarefa dolorosa e quase impossível, agora era de simples ingestão.
 Aqui e ali, a falta de conselhos maternos e femininos. Aqui e ali a ausência do cheiro. Aqui e ali a não existência de beijos doces.

Acordou mais cedo que o habitual, porque no dia anterior não tinha corrido até ao fim a persiana do quarto. Esfregou os olhos, bocejou, espreguiçou-se duas vezes e dessas duas vezes sentiu-se do tamanho de um gigante, daqueles que pisariam a casa da avó e o quintal ficando o dedo grande para lá do portão prateado.

-"Laura"- chamaram da sala. A voz grave e colocada do pai. Calçou as botinhas amarelas com um laço laranja de tule a fazer de atacador que a avó lhe havia oferecido no Natal passado. Em sete passos chegou à cozinha onde o pai, a avó, Carlos e Adelaide estavam há já algum tempo a preparar um pequeno almoço abundante. Pão acabado de sair do forno, manteiga feita pela Adelaide, leite ainda morno que o pastor tinha deixado por lá numa ferrada de cinco litros, e bem no centro, um bolo de iogurte com um pouco de canela onde se lia "Parabéns Laurinha". Fazia sete anos. Depois dos abraços apertados e dos beijos repenicados sentou-se no pequeno banco de carvalho, hoje ao centro. Apagou as velas, fechou os olhos e pediu um desejo. Coisa simples, para não a acusarem mais tarde de pedir demais, e para que essa facilidade tornasse a realização real.
Um embrulho reles, moldável, foi parar ao seu colo. A avó orgulhosa e de olhos húmidos fitava-a e tentava adivinhar a reação da pequena ao perceber que era um cachecol de lã feito por ela com a letra L numa das pontas. Disfarçou bem e quase convenceu toda a gente que tinha gostado do presente.
O Carlos e a Adelaide tinham tratado do bolo de aniversário.

O pai retirou-se por alguns segundos e voltou com um pacote pequenino. Rasgou efusivamente o papel e dentro, um pedaço de couro atado com um nagalho. Abriu e um pequeno anel de cobre caiu. Era vulgar mas para ela tinha-se tornado a mais valiosa jóia do mundo.