Véspera de segunda, aquele dia que depois das seis da tarde
se torna fatídico, demasiado melancólico. É estranho como dois pequenos dias de
fim de semana sabem a tanto, sim pequenos dias, julgo ser impossível que tenham
as mesmas vinte e quatro horas dos restantes.
Depois do calor da lareira, é hora de seguir para a cozinha,
retirar uma carcaça fresca e barrá-la com doce de cereja, receita da bisavó,
oriunda de terras beirãs, onde o frio queima e o vento corta.
A última casa da esquerda com um pequeno quintal mal cuidado
e um portão enferrujado e perro, outrora de cor prateada e puxador negro, uma
pequena esfera bem oleada que a Laura, única neta, não tinha qualquer
dificuldade em fazer rodar.
Cheirava a queijo de ovelha e chá de cidreira. A avó da
Laura tinha preparado o lanche para as duas. Pousou a mala da escola ao canto
da pequena cozinha com pouco mais de um metro quadrado. De um lado, o fogão a
lenha e o lava- louças, de granito. Do outro, uma pequena bancada que terminava
com o frigorifico. Laura achava estranha uma pequena caixa de madeira
que a avó guardava religiosamente, não entendia porquê. A cozinha por si só era
demasiado pequena para reunir três pessoas.
Beijou o rosto do pai onde a barba causava impressão
nos lábios da pequena, e o envelhecia uns dez anos. Trabalhava como operário
numa pequena fábrica de lã, a cinco quilómetros de casa,
que ele percorria diariamente a pé. O ar gélido da manhã e de fim de dia semeava
rugas a cada golfada. Homem alto de cabelo dourado e olhos verdes, triste por
natureza, reservado por consequência lógica. Havia-se divorciado da mãe de
Laura fazia na semana seguinte oito anos. Era professora primária na única
escola das redondezas. Cansada da monotonia do lugar, decidiu ir embora para a capital com uma amiga de infância. Deixou para trás tudo, sem pestanejar. Seria
digno salientar que não foi uma decisão fácil, que no dia que antecedeu a
partida mal pregou olho e que ainda hoje chora pela filha. Nada disso
aconteceu, era o expectável, não aos olhos da ética ancestral da mulher.
A verdade é que ambos se habituaram à ausência consentida da
mãe, e se no principio esquecer tudo era tarefa dolorosa e quase impossível,
agora era de simples ingestão.
Aqui e ali, a falta de conselhos maternos e femininos. Aqui e ali a ausência do cheiro. Aqui e ali a não existência de beijos doces.
Aqui e ali, a falta de conselhos maternos e femininos. Aqui e ali a ausência do cheiro. Aqui e ali a não existência de beijos doces.
Acordou mais cedo que o habitual, porque no dia anterior não tinha corrido até ao fim a persiana do quarto. Esfregou os olhos, bocejou, espreguiçou-se duas vezes e dessas duas vezes sentiu-se do tamanho de um gigante, daqueles que pisariam a casa da avó e o quintal ficando o dedo grande para lá do portão prateado.
-"Laura"- chamaram da sala. A voz grave e colocada do pai.
Calçou as botinhas amarelas com um laço laranja de tule a fazer de atacador que
a avó lhe havia oferecido no Natal passado. Em sete passos chegou à cozinha onde
o pai, a avó, Carlos e Adelaide estavam há já algum tempo a preparar um pequeno
almoço abundante. Pão acabado de sair do forno, manteiga feita pela Adelaide,
leite ainda morno que o pastor tinha deixado por lá numa ferrada de cinco
litros, e bem no centro, um bolo de iogurte com um pouco de canela onde se lia "Parabéns Laurinha". Fazia sete anos. Depois dos abraços apertados e
dos beijos repenicados sentou-se no pequeno banco de carvalho, hoje ao centro.
Apagou as velas, fechou os olhos e pediu um desejo. Coisa simples, para não a
acusarem mais tarde de pedir demais, e para que essa facilidade tornasse a
realização real.
Um embrulho reles, moldável, foi parar
ao seu colo. A avó orgulhosa e de olhos húmidos fitava-a e tentava adivinhar a
reação da pequena ao perceber que era um cachecol de lã feito por ela com a
letra L numa das pontas. Disfarçou bem e quase convenceu toda a gente que
tinha gostado do presente.
O Carlos e a Adelaide tinham tratado do bolo de aniversário.
O pai retirou-se por alguns segundos e voltou com um pacote
pequenino. Rasgou efusivamente o papel e dentro, um pedaço de couro atado com
um nagalho. Abriu e um pequeno anel de cobre caiu. Era vulgar mas para ela
tinha-se tornado a mais valiosa jóia do mundo.
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