terça-feira, 21 de abril de 2015

Laura

Véspera de segunda, aquele dia que depois das seis da tarde se torna fatídico, demasiado melancólico. É estranho como dois pequenos dias de fim de semana sabem a tanto, sim pequenos dias, julgo ser impossível que tenham as mesmas vinte e quatro horas dos restantes.
Depois do calor da lareira, é hora de seguir para a cozinha, retirar uma carcaça fresca e barrá-la com doce de cereja, receita da bisavó, oriunda de terras beirãs, onde o frio queima e o vento corta.
A última casa da esquerda com um pequeno quintal mal cuidado e um portão enferrujado e perro, outrora de cor prateada e puxador negro, uma pequena esfera bem oleada que a Laura, única neta, não tinha qualquer dificuldade em fazer rodar.
Cheirava a queijo de ovelha e chá de cidreira. A avó da Laura tinha preparado o lanche para as duas. Pousou a mala da escola ao canto da pequena cozinha com pouco mais de um metro quadrado. De um lado, o fogão a lenha e o lava- louças, de granito. Do outro, uma pequena bancada que terminava com o frigorifico. Laura achava estranha uma pequena caixa de madeira que a avó guardava religiosamente, não entendia porquê. A cozinha por si só era demasiado pequena para reunir três pessoas.
 Beijou o rosto do pai onde a barba causava impressão nos lábios da pequena, e o envelhecia uns dez anos. Trabalhava como operário numa pequena fábrica de lã, a cinco quilómetros de casa, que ele percorria diariamente a pé. O ar gélido da manhã e de fim de dia semeava rugas a cada golfada. Homem alto de cabelo dourado e olhos verdes, triste por natureza, reservado por consequência lógica. Havia-se divorciado da mãe de Laura fazia na semana seguinte oito anos. Era professora primária na única escola das redondezas. Cansada da monotonia do lugar, decidiu ir embora para a capital com uma amiga de infância. Deixou para trás tudo, sem pestanejar. Seria digno salientar que não foi uma decisão fácil, que no dia que antecedeu a partida mal pregou olho e que ainda hoje chora pela filha. Nada disso aconteceu, era o expectável, não aos olhos da ética ancestral da mulher.
A verdade é que ambos se habituaram à ausência consentida da mãe, e se no principio esquecer tudo era tarefa dolorosa e quase impossível, agora era de simples ingestão.
 Aqui e ali, a falta de conselhos maternos e femininos. Aqui e ali a ausência do cheiro. Aqui e ali a não existência de beijos doces.

Acordou mais cedo que o habitual, porque no dia anterior não tinha corrido até ao fim a persiana do quarto. Esfregou os olhos, bocejou, espreguiçou-se duas vezes e dessas duas vezes sentiu-se do tamanho de um gigante, daqueles que pisariam a casa da avó e o quintal ficando o dedo grande para lá do portão prateado.

-"Laura"- chamaram da sala. A voz grave e colocada do pai. Calçou as botinhas amarelas com um laço laranja de tule a fazer de atacador que a avó lhe havia oferecido no Natal passado. Em sete passos chegou à cozinha onde o pai, a avó, Carlos e Adelaide estavam há já algum tempo a preparar um pequeno almoço abundante. Pão acabado de sair do forno, manteiga feita pela Adelaide, leite ainda morno que o pastor tinha deixado por lá numa ferrada de cinco litros, e bem no centro, um bolo de iogurte com um pouco de canela onde se lia "Parabéns Laurinha". Fazia sete anos. Depois dos abraços apertados e dos beijos repenicados sentou-se no pequeno banco de carvalho, hoje ao centro. Apagou as velas, fechou os olhos e pediu um desejo. Coisa simples, para não a acusarem mais tarde de pedir demais, e para que essa facilidade tornasse a realização real.
Um embrulho reles, moldável, foi parar ao seu colo. A avó orgulhosa e de olhos húmidos fitava-a e tentava adivinhar a reação da pequena ao perceber que era um cachecol de lã feito por ela com a letra L numa das pontas. Disfarçou bem e quase convenceu toda a gente que tinha gostado do presente.
O Carlos e a Adelaide tinham tratado do bolo de aniversário.

O pai retirou-se por alguns segundos e voltou com um pacote pequenino. Rasgou efusivamente o papel e dentro, um pedaço de couro atado com um nagalho. Abriu e um pequeno anel de cobre caiu. Era vulgar mas para ela tinha-se tornado a mais valiosa jóia do mundo.



Sem comentários:

Enviar um comentário